A Livraria Saraiva foi fundada em 1914. Sempre administrada pela família Saraiva, responsável pelos seus anos de glória, pela expansão vertiginosa, pela história centenária. Porém, há anos arrastava uma crise que drenava suas forças e escancarava gradualmente sua ruína.
Como uma das redes de livraria mais tradicionais e longevas do Brasil teve desfecho tão trágico? Por que gigantes do setor livreiro, inevitável não citar a Livraria Cultura, vivem pesadelo interminável e estão na beira do precipício?
Pretendo oferecer meus 2 centavos a respeito explicando as causas que levaram a Saraiva ao colapso e a perspectiva para o setor livreiro para os próximos anos.
Novela mexicana: recuperação da Saraiva se arrasta por anos
A crise da Saraiva é anterior ao pedido de Recuperação Judicial (RJ) em 2018, pois quem me acompanha sabe que a RJ é o último recurso para tentar salvar a empresa. Isso significa que antes da recuperação a situação estava delicada e tentativas foram feitas, mas todas frustradas.
Sabe-se que, assim como a Cultura, a Saraiva recorreu a empréstimos subsidiados do BNDES para tentar mascarar a crise e obter fôlego. Mas com a crise apertando no país em meados de 2016 e a mudança de postura do governo federal, a torneira esgotou e a situação ficou insustentável.
Em 2018, ano que recorreu à cartada da recuperação, a rede devia o montante de R$ 675 milhões. O pedido de RJ foi aprovado pelo judiciário e um administrador nomeado: RV3 Consultores.
O plano definiu estratégias para conter o incêndio, como venda de ativos, enxugamento de custos, políticas de vendas, entre outras.
Os resultados foram sofríveis, mais de uma vez colocou-se dúvida sobre a capacidade da empresa de cumprir o acordado. A situação se arrastou neste mar de incerteza e sacrifícios até o segundo semestre deste ano. Ocasião em que ocorreu o fechamento das últimas unidades, 5, demissão de todos os funcionários e a saída de Marcos Guedes do conselho de administração.
Essa saída pegou os credores de surpresa, porque Guedes era alinhado à família Saraiva e presidente da companhia entre os anos 2020 e 2023.
Os dados do segundo trimestre deste ano talvez expliquem a decisão: o prejuízo operacional do grupo foi 16% maior em relação ao ano anterior, somando R$ 11 milhões. Mais: a receita líquida das lojas físicas desabou em chocantes 60,2% comparando-se ao desempenho de 2022. A receita do site foi ainda pior: encolhimento de 78%.
O pedido de falência
A RV3 Consultores martelou o penúltimo prego no caixão da Saraiva no último dia 22 de setembro ao encaminhar o pedido de falência a 2º Vara de São Paulo. Na petição apresentada, a consultoria apontou que a livraria descumpriu algumas das condições previamente acordadas no plano de recuperação.
Analisando a causa mortis
Há vários aspectos que explicam a falência da Saraiva. Não existe uma causa isolada, mas uma conjunção de fatores que foram desencadeando problemas insolúveis ao longo do tempo.
Eles podem ser listados em dois grupos: causas internas e externas.
Controláveis: causas internas
As causas internas dizem respeito ao modelo de gestão e as definições estratégicas dos últimos anos. Destaco a cultura administrativa familiar e centenária como possível fonte de problema.
Não que a gestão familiar seja necessariamente um problema, mas devido aos últimos acontecimentos e o fato do CEO da Saraiva continuar a ser um membro da família Saraiva, indica que o caso demandava oxigenação no modelo administrativo.
Outro aspecto de natureza interna foi à decisão de vender em 2015 a editora Somos Educação por R$ 725 milhões. Para os especialistas do setor, a Saraiva com esse movimento se desfez do braço da empresa que era capaz de segurar a onda nos períodos de livros encalhados nas prateleiras de suas lojas.
Sem a editora, a Saraiva passou a depender quase que exclusivamente de aportes financeiros para equilibrar as contas.
Outro erro estratégico foi investir na expansão do negócio via financiamento do BNDES. Diferente de outros setores da economia, apostar em fusões e aquisições é uma estratégia arriscada quando o produto é livro. A escala dos ganhos deste produto é menor em razão de uma série de particularidades.
Resultado: o negócio cresceu demais, encareceu demais para a capacidade de vazão do principal produto.
Fora de controle: causas externas
Os fatores externos são aqueles em que a empresa não detém controle. Ela precisa reagir aos seus efeitos para se blindar e se adaptar aos novos cenários. O que definitivamente a Saraiva não foi capaz e isto passa por deficiências internas.
Com a ascensão das ferramentas digitais, muito conteúdo que antes era restrito ao mercado livreiro se difundiu franca e gratuitamente na internet. E não só conteúdo antigo, autores e empresas também começaram a produzir conteúdo e divulgar na internet, com acesso gratuito ou pago. Inclusive na área científica. Isto encolheu o mercado livreiro.
O problema se agravou com a Amazon. O maior e-commerce de livros do mundo chegou ao Brasil investimento agressivamente, oferecendo descontos muito acima do praticado no mercado.
Para completar a tempestade, emergiu a crise econômica na segunda metade da década de 2010 que congelou o termômetro das vendas.
Era possível salvar a Saraiva?
Se analisarmos o mercado livreiro, não só nacional, mas mundial, nota-se que a crise do setor é profunda. Gigantes como Barne & Noble estão em processo de recuperação judicial, a FNAC precisou se chacoalhar para seguir viva na França e o mercado livreiro na Inglaterra também enfrenta sérias dificuldades.
O mercado do livro está em crise. No Brasil, o problema parece ser crônico, pois há mais de 3 décadas o setor amarga decrescimento econômico. Em 16 anos, segundo relatório da Nielsen Book Data, o mercado editorial brasileiro encolheu 39%.
Com isto posto, mesmo se a Saraiva não tivesse cometido os erros estratégicos mencionados, teria condições de sobreviver?
A resposta é sim, pois há exemplos no Brasil de livrarias que vivem fase de prosperidade, apesar dos enormes desafios que o setor enfrenta no momento.
Um deles é a Livraria da Vila, que nos últimos 3 anos (dados até 2022) inaugurou 10 endereços. A Livraria Travessa também cresceu no período, saltando de 7 para 12 unidades. Enquanto as gigantes Saraiva e Cultura conheciam o seu ocaso, pequenas e médias livrarias como Megafauna, Simples, Curitiba, Gato sem Rabo, Leitura e outras surgiram e continuam firmes e fortes.
Por que prosperaram?
O que essas livrarias novas e prósperas têm em comum? Simples: não pretendem competir com o mercado virtual. Elas não tentam ser uma megastore com objetivo de vender mais que livros. São operações menores, focadas no livro, na relação com os clientes, editoras e autores locais.
Esse é o passo que a Saraiva e a Cultura poderiam ter dado. Reduzir os custos saindo dos prédios enormes de aluguéis caríssimos, reduzir a operação, focar no mercado de especialidade e oferecer um diferencial que multinacionais como a Amazon não pode oferecer: a relação próxima e direta com o cliente, abraçar uma comunidade, acolher autores, reunir leitores, promover e difundir conhecimento tendo como o ponto de partida e de chegada o livro.
A Saraiva infelizmente não tem mais salvação, mas ainda há esperança para o mercado livreiro. Você já visitou alguma das livrarias novatas? É um bom momento para novas experiências.